Legalidade pra que te quero?

Se tem uma coisa que deixa um sabor amargo na minha boca e acaba com o meu humor é lidar com “buRRocracia”. Eu jamais poderia trabalhar em qualquer área que estivesse relacionada a papeleo, termo usado em espanhol pra dizer tramitação de papéis, que é mais ou menos a nossa papelada. Mas aqui, como eles usam mais papel e bem menos tecnologia do que no Brasil, existe também o verbo traspapelar, que seria perder, extraviar ou (mal-)guardar um papel ou documento.

Uma prova disso está nas fotos: acreditem se puderem, este é meu documento de “Residencia Permanente” na Argentina. Antes dele, tive que dedicar horas de fila e papeleo à “Residencia Provisoria” (que era igualmente rudimentar) e morar dois anos no país pra ter direito à “Permanente” e, de brinde, vieram vários outros trâmites burocráticos pra me enfurecer. Foram 4 anos pra conquistar isso (praticamente a tiro de canhão, lança e espada), e serão 2 minutos pra qualquer um falsificar, se quiser. Mas até agora eu não consegui o DNI (Documento Nacional de Identidade, o RG deles). E já faz 4 meses que entreguei tudo o que precisava no “Registro de Personas” – fora outra tentativa frustada que nem quero lembrar.

Esta é uma das 3 páginas do "documento", e embora esteja assinado pela pessoa aí que dá fé que viu o original, eu mesma nunca vi esse tal original

Péssima ideia de fazer tudo certinho… Decidir viver legalizada aqui é um eterno transtorno! Devia ter mantido o tradicional sistema: a cada 3 meses, quando vencia o visto de turista, eu atravessava o Rio da Prata, visitava o Uruguai, ou ia pro Brasil, em vez de pagar uma taxa em uma repartição pública.

E pensar que em algum momento eu até invejei os argentinos que têm um “documento único”. Na verdade, é um número igual de três ou quatro utilidades. O número do DNI é o número pelo qual a receita federal controla tudo (o nosso CPF) e se o indivíduo abrir uma microempresa esse será também seu CUIT (o nosso CNPJ).

"Novo DNI" que eu ainda não tenho...

Mas só no ano passado é que eles modernizaram a forma de produzir os documentos com impressão digital escaneada, foto digital tirada na hora e entrega em 15 dias (antes três meses era o melhor cenário)… Só que o  formato continuou sendo o livrinho arcaico (apesar de simpático), que todo mundo guarda dentro do cofre, porque se perder leva muuitos meses pra obter outro, mesmo no sistema novo e sendo argentino. E por isso existe a “Cédula” de plástico.

Conclusão: “Poupatempo” aqui só vai chegar no século que vem! Será que até lá vai ter chegado o meu DNI?

Pow! Paf! Atchim! Au-au!

Esta é a Tuba!

Desde que eu comecei a “desfilar” pela Argentina e pelo Brasil com a minha cachorrinha, que já fez um ano, (sim! ela é internacional! já viajou para o Brasil!), me perguntam: “Mas e daí? Ela fala português ou espanhol”?

Na verdade ela fala “cachorrês”, alguma coisa entre um uivo e um resmungo de uma velhinha reclamona. Mas a pergunta, que muitos considerariam infame e eu acho simpática, tem mais fundamento do que se imagina. Se no Brasil o melhor amigo do homem faz “au-au”, na Argentina ele faz “guau, guau”. Assim como o galo que para os brasileiros canta “cocorocó”, para os “hispano hablantes” canta “ki-kiri-ki”. É só abrir um livrinho infantil para descobrir outras várias diferenças. E os exemplos não se restringem ao mundo animal… Aqui a gente espirra “atchis”, no Brasil é “atchim”. E o nosso “Oba” comemorativo não quer dizer nada para os argentinos, que usam “Yupii” (pronúncia: “jupii”). Mas dificilmente você escuta alguém falando isso, eu quase só vejo as onomatopeias por escrito.

Enquanto no Brasil a gente se expressa muito mais por meio deste recurso. “Eu estava lá, pá… daí, de repente, tumm… bati em alguma coisa.” Não sei se a razão disso está mais ligada à falta de recursos linguísticos de uma maioria com de poucas letras… mas eu acredito que tem mais a ver com um jeitinho mais solto, informal e sonoro da nossa língua e do nosso povo. Aqui, não tem blablablá, tititi, lero-lero ou nhenhenhém, o uso das onomatopeias fica bastante limitado às histórias em quadrinhos.

O personagem Clemente diz: "A onomatopeia está para os quadrinhos assim como a metáfora está para a poesía." (autor: Caloi)

Uma expressão vale mais que mil palavras…

Geralmente uma expressão ou ditado popular é capaz de resumir tudo o que queremos dizer, mas levaríamos séculos para explicar em outras palavras. Além disso, uma frase bem colocada tem muito mais impacto e efeito do que uma longa história cheia de voltas. O problema quando falamos outra língua é exatamente aprender as expressões e ditados locais…

Pense comigo: se eu falar pra um argentino “Pensás que estás en la casa de la madre Joana?” com certeza só vai servir pra ele pensar que eu sou uma “loca de guerra” (o nosso “louca de pedra”) e que só falo coisas “sin son ni ton” (sem pé nem cabeça). E como um brasileiro poderia imaginar que um possível paralelo para o comportamento do folgado da “casa da mãe Joana” seria “como Pancho por su casa”?

É verdade que existem outras expressões muito mais próximas das correspondentes em português “Te doy la mano y me agarrás el codo”, já dá para imaginar que é a ideia de dar a mão e as pessoas quererem o braço (só se precisa saber que “codo” é cotovelo e a proximidade já facilita tudo).  Mas tem casos que são o oposto. Se no Brasil a gente coloca “panos quentes” para acalmar a situação, aqui eles colocam “paños fríos”. E tem ainda aquelas que são quase autoexplicativas, como “pajarito que comió, voló” (passarinho que comeu, voou), uma forma mais sútil de dizer “cachorro magro”, que come e vai embora.

Os exemplos são intermináveis e dão pano para muitas mangas (esta eu não sei como é em castelhano…). Por isso, “a cada dos por tres” (vira e mexe/com frequência) eu vou falar mais sobre expressões idiomáticas aqui.

Aceito sugestões!… Você conhece algum ditado em espanhol que acha legal, péssimo ou engraçado? Ou quer saber o que significa alguma expressão que já escutou e não registrou o que queriam te dizer com isso… 😉

Entrei na linha

by 100mifa

Este post ficou “engavetado” por quase duas semanas. Cada dia que eu pegava o trem da linha Mitre e ia meio apertada ou quase esmagada, achava melhor pensar um pouco mais sobre o que eu ia dizer aqui.

Mas, hoje eu estou decidida. Depois de uma semana com um carro à minha total disposição, pela primeira vez nesses meus 4 anos e meio aqui, eu já não tenho mais dúvidas… Trem é tudo de bom! Não tem coisa melhor!

Eu adoro dirigir, mas como qualquer ser humano em sã consciência odeio trânsito. Descobri que caminhar oito quadras e pegar o trem incomoda muito menos gente do que um elefante, do que uma fila interminável de carros ou do que um motorista de ônibus bronco.

É  uma delícia ter uma plataforma inteira a meu dispor para ficar esperando (mesmo nos vários dias que ele atrasa), poder entrar sem ter que falar com ninguém mal-humorado (aqui a gente diz até onde vai para o motorista e ele programa a máquina com o valor a pagar) e não ter que me equilibrar para colocar as moedas (porque só aceita moeda) e nem fazer malabarismo para sobreviver às barbeiragens do cara.

Além do que a passagem custa de 0,80 a 2,20 pesos. Baratinho!! E o transporte público aqui é mesmo para todos os públicos, tem gente de terno, jovem moderninho, todo mundo de MP3, alguns carregando laptops, e também gente simples e sem-teto.

O trem também ganha do metrô no meu ranking de preferências porque dá direito a luz do dia e vista panorâmica. Além de ter muito menos escada pra subir e descer. É a diferença entre me sentir uma minhoca e um papa-léguas.

Isso sem falar nas viagens de longa distância: não ter duas horas de check-in, não ter que esperar malas na esteira e não ficar com a sensação de claustrofobia pelo simples fato de que dá pra pular pela janela ou mesmo dá pedir pro “maquinista” pisar no freio…

Que bom seria poder viajar de trem pelo Brasil e pela Argentina, e entre os dois países também (num trem-bala, claro!)…

Prédio na horizontal

Pra encontrar um cantinho bacana em Buenos Aires, e na Argentina em geral, um brasileiro precisa “desconstruir” uma série de termos imobiliários e descobrir outra série de particularidades locais.

Eu não estou falando de entender contrato de aluguel não. Eu me refiro a, além de decifrar as abreviações dos anúncios, esquecer o significado e sentido de certas coisas em português. A começar literalmente pelas bases: diferente daí, há excelentes apartamentos no andar térreo dos prédios (chamado “planta baja”), supervalorizados porque oferecem um pátio, quintal ou jardim.

A orientação do imóvel também pesa muito. Talvez muito mais que no Brasil. Os apartamentos se dividem em “frente” e “contrafrente”, com as janelas pra rua ou para o “pulmón de manzana”, respectivamente. Na arquitetura daqui os prédios são construídos sem recuo da calçada, ou seja, as janelas dão mesmo diretamente pra rua. E, do outro lado, atrás do prédio, sempre sobra uma área que na maioria das vezes tem gramado e árvores. Dentro dessa lógica, quando todos os prédios têm os fundos com plantas e estes fundos se encontram no centro do quarteirão (“manzana”, em espanhol), se forma um “pulmão verde”. E isso faz toda a diferença no visual!

As diferenças vão um tanto além. Se a questão é morar em casa, atenção porque “Duplex” não é uma casa de dois andares, é uma casa geminada. Mas se uma casa parecer grande e insegura demais e morar em apartamento não for uma ideia que agrade, ainda existe uma solução: um PH (lê-se: “pê-atche”), sigla de “Propiedad Horizontal”. Já testada e superaprovado por mim!! Esses prédios horizontais são quatro ou mais casas, uma ao lado da outra e às vezes até em cima da outra, dentro do mesmo terreno e geralmente com “terraza”. Agora substitua a conotação que o termo “terraço” (ou pior ainda “laje”) tem no Brasil, como “coisa de pobre” e pense na ideia de uma “cobertura”. Um “PH con terraza” é disputadíssimo pelo respiro que a área aberta oferece. (Já renovei o contrato do meu, porque daqui não quero sair, daqui não quero que ninguém me tire!)

A partir daí é só ter em mente que “monoambiente” é quitinete; “dos ambientes” tem um quarto; “tres ambientes” tem dois quartos e assim por diante. “Baño completo” (banheiro completo) quer dizer que tem bidê, muito usado aqui. “Expensas” seria o valor do condomínio. Os “apto profesional” são os que podem ser usados como escritório. “Lavadero” nada mais é do que “área de serviço” (um tanto rara aqui), “balcón” é sacada e “family”, uma área comum para reunir a família na frente da TV.

E quando gostar de verdade de um imóvelo o mais fundamental é ser rápido no gatilho. Tem que fazer a reserva na mesma hora. Infelizmente não há tempo para pensar muito, porque eles vão que nem água. Mas é preciso estar com o coração e o bolso preparados, porque os aluguéis estão caríssimos. Por exemplo: “Dto 1 amb. Amueblado C/Patio “Palermo” $ 1.300” (traduzindo: quitinete mobiliada com pátio em Palermo, 1.300 pesos.Detalhe extra: tem 36 m2). E, bom, nem preciso falar que estrangeiro sofre neste mercado porque não tem fiador (“garante”/”garantía”) e muitas vezes só consegue fazer contrato temporário e, pasmem, em dólares!

Direto e reto

A capacidade do argentino de ser preciso é proporcionalmente igual à sua habilidade para ser genérico e não dizer nada.

O maior exemplo de precisão para mim é a palavra “escarbadiente”, em tradução livre “escavador de dente”, que como não podia deixar de ser é o nosso “palito de dente”. É a explicação exata, nua, crua e meio nojenta do papel que tem esse pedacinho de madeira usado para limpar o sorriso. E “sorbete” é o canudo, afinal você sorve (chupa o líquido) por meio dele. Mais direto ao ponto não podia ser, né?

Só que o argentino também dá o seu “jeitinho” quando quer ser bem amplo e dizer tudo e nada ao mesmo tempo. “Al mediodía” não é o que o brasileiro imagina, ou seja, o nosso meio-dia, 12 horas em punto. Ao contrário, é qualquer hora entre às 11 da manhã e às 15 da tarde.

Mas se todo esse intervalo de horas não for suficiente para você fazer o que devia, é só tirar a sua melhor desculpa da manga: “Tuve un inconveniente” (Tive um inconveniente). Esse é o argumento pra qualquer coisa que não se quer explicar. E o mais interessante é que a conversa termina aí. Um brasileiro nunca anuncia um “tive um problema” e termina aí. Isso costuma ser só uma introdução que dá tempo para o outro sentar e se acomodar porque uma longa história vem  em seguida. Mas aqui, perguntar o que aconteceu depois dessa sentença fatal é superdeselegante e está restrito a chefões, pais e autoridades, como maridos e esposas, pra quem é preciso “sí o sí” (sim ou sim, ou seja, não há opção) apresentar um álibi bem forte.

Outra boa é “tuve que hacer un trámite” (tive que fazer um “trâmite”), que não se trata de nenhuma questão burocrática, como seria em português. Só se passar na padaria para comprar pão ou buscar o carro no estacionamento ou comprar o que for que esteja faltando pra sua receita puder ser interpretado assim.

Mais uma saída discreta para não ter que ficar se explicando: “te conviene” ou “no me conviene”. Direto, reto, sucinto e economiza um monte de rodeios e, até algumas “mentiras brancas” pras quais a gente às vezes apela. Principalmente porque, como eu já comentei, quando eles são precisos eles são precisos de verdade. Mas sem dúvida muita história boa e conversas legais se perdem, às vezes falta um pouco mais de interação. Eita secura estéril…

O Tratado de Tordesilhas do idioma

Quanto mais aprendo espanhol, mais confirmo a minha teoria de que aconteceu um Tratado de Tordesilhas muito antes do acordo que dividiu os territórios do Novo Mundo. Foi um “desacordo” que dividiu as palavras entre portugueses e espanhóis.

Ou seja, do mar de vocábulos latinos em que esses dois vizinhos navegavam muitos séculos atrás, parece que eles fizeram questão de escolher significados ou cargas diferentes para cada um.

“Dança” é usado para bailes de salão, enquanto a palavra “baile” em português é que tem esse sentido. “Intriga” é curiosidade. “Tarado” é louco. “Saco” é casaco. “Bolsa” é saco plástico. “Cartera” é bolsa. “Taza” (que se pronuncia “tassa”) é xícara. “Copa” é taça. “Copo” é flocos, como de neve ou de cereais. “Vaso” é copo. Uma criança “mal criada” é mimada. “Sereno” é o guarda-noturno. “Parado” é em pé. “Quieto” é parado, sem se mexer. “Molestar” é única e exclusivamente incomodar e não tem nenhuma conotação sexual, mas nas primeiras vezes que eu tinha que falar “Te molesto?” (Estou incomodando?) na verdade me dava muito pudor. Depois a gente acaba perdendo a vergonha e já “agarra el saco” de qualquer homem (ou mulher) encapotado que entra em casa no inverno.

Mas a primeira vitória pra mim foi conseguir soletrar o meu próprio sobrenome com naturalidade e sem medo de levar um tapão na boca: “Mesquita con ese, cu, u, i” (Mesquita, com esse, que, u, i). É isso aí… a letra “que” chama “cu”. E eu, ingênua, que achava que ia ser simples, ia dizer: “Mesquita, como a igreja, mas com ‘s’” (porque em espanhol se escreve “mezquita”). Mas não funcionava, sempre me olhavam com cara de interrogação e perguntavam se era com “k”. Não tive saída e me acostumei.